Postagens mais visitadas

manchetes do dia

A herança de Lênin (Ernest Mandel)



Ernest Ezra Mandel (5 de abril de 1923 — 20 de julho de 1995) foi um revolucionário belga, considerado um dos mais importantes dirigentes trotskistas da segunda metade do século XX, contribuindo em questões econômicas e políticas na perspectiva dos interesses dos trabalhadores. Apesar de certas diferenças com algumas teses de Ernest Mandel, não podemos nos furtar de registrar os 100 anos de seu nascimento com um texto seu sobre Lênin, que nasceu em 22 de abril de 1870.
--------------------------------

A herança de Lênin, – Ernest Mandel, abril de 1970

Tradução de José
Revisão de Pedro Barbosa
O artigo a seguir foi escrito para o centenário do nascimento de Lênin.

O trabalho de vida de Lênin é uma totalidade em que teoria e prática não podem ser separadas uma da outra. O próprio Lênin declarou: sem teoria revolucionária, não há prática revolucionária. Hoje, nenhuma pessoa séria poderia negar o significado histórico da revolução socialista de outubro ou da criação do Estado soviético: esses eventos marcaram indelevelmente a história do nosso século - e do século vindouro.

Mas o insight teórico que tornou possíveis esses grandes eventos é tão importante, senão mais importante, de um ponto de vista de longo prazo, quanto esses próprios eventos. Pois esse insight, a longo prazo, possibilitará uma extensão mundial da revolução de outubro, um esforço que falhou temporariamente durante a vida de Lênin e Trótski. Sete pilares principais constituem o corpo do leninismo, um desenvolvimento do marxismo na época imperialista. Essas sete partes principais do leninismo se mantêm verdadeiras hoje, como o eram há quarenta e seis anos, quando Lênin morreu - seu significado pleno só está sendo entendido hoje, para massas cada vez maiores de trabalhadores e camponeses pobres, intelectuais e estudantes revolucionários, em várias partes importantes do mundo.

1. Imperialismo: último estágio do capitalismo

A teoria do imperialismo como fase superior do capitalismo, que envolve a compreensão de que a livre concorrência leva à criação de grandes monopólios (trustes, holdings, cartéis, combinações; acrescentamos hoje: empresas multinacionais), ou seja, o domínio de um pequeno punhado de grupos financeiros sobre a economia e a sociedade dos países imperialistas e de seus satélites coloniais e semicoloniais.

O imperialismo não significa necessariamente o fim do crescimento econômico, uma parada final do crescimento das forças produtivas. Mas significa que o capitalismo cumpriu sua tarefa historicamente progressista de criação do mercado mundial e de introdução de uma divisão internacional do trabalho, e que está aberta uma época de crise estrutural da economia mundial capitalista.

Essa crise estrutural, embora coincida às vezes com profundas crises conjunturais de superprodução (como ocorreu em 1929-33 e durante as subsequentes “recessões”), é marcada por dois traços decisivamente reacionários: nas partes subdesenvolvidas do mundo, impede os próprios processos de libertação e unificação nacionais, de emancipação agrária e industrialização, que as grandes revoluções burguesas do passado realizaram no Ocidente.

Nos próprios países imperialistas, é marcado por um crescente e assustador parasitismo (desperdício em larga escala de materiais e recursos humanos, não apenas através de guerras, desemprego, excesso de capacidade, etc.), mas também pelo aumento massivo da venda e distribuição de encargos, degradação sistemática da qualidade dos produtos, ameaças contra o equilíbrio ecológico e ameaças contra a própria sobrevivência física da humanidade.

2. O caráter revolucionário de nossa época

A teoria do caráter revolucionário de nossa época, da “atualidade” da revolução socialista, que deriva diretamente da crise estrutural do capitalismo mundial. Embora essa crise seja permanente (apesar de conhecer altos e baixos, períodos de estabilização temporária e períodos de grande instabilidade do capitalismo nos principais países e continentes), do ponto de vista de Lênin não há “situações revolucionárias permanentes”: se a classe trabalhadora não tirar proveito de uma combinação favorável de circunstâncias para conquistar o poder, uma derrota da revolução cria pré-condições para um retorno temporário da classe capitalista.

A revolução socialista mundial, que está na agenda desde a Primeira Guerra Mundial, assume a forma de um processo. A cadeia de países subjugados pelo capitalismo imperialista rompe primeiro em seus elos mais fracos (podem ser países subdesenvolvidos como a Rússia e a China, mas não há lei no pensamento de Lênin que diga que deve ser assim).

Para Lênin, embora os trabalhadores de cada país em que ocorre uma situação revolucionária favorável devam, de todos os modos, tomar o poder, eles devem considerar isso como um meio de fortalecer as forças revolucionárias nos países vizinhos e em escala mundial e devem se considerar sempre um destacamento do movimento comunista revolucionário mundial.

3. O partido

A teoria do partido revolucionário de vanguarda, baseada em uma compreensão dialética correta da inter-relação entre lutas de massa objetivas e consciência de classe subjetiva sob o capitalismo.

Defendendo e ampliando os conceitos do materialismo histórico e dialético de Marx e Engels, Lênin rejeitou a crença mecanicista e ingênua de que a luta de classes em si mesma dá à classe explorada - separada de todas as principais fontes da ciência - o poder de reconstruir espontaneamente a teoria marxista, o produto mais elevado de séculos de desenvolvimento intelectual e científico da humanidade.

A teoria marxista, a consciência socialista, devem ser introduzidas de fora na luta de classes, por esforços conscientes de uma vanguarda revolucionária. Sem esse esforço constante, a esmagadora maioria da classe trabalhadora permanece sujeita à influência predominante da ideologia burguesa e pequeno-burguesa. Mas sem uma fusão bem-sucedida com uma ampla vanguarda da classe trabalhadora, a minoria revolucionária ainda não é um partido; é apenas uma tentativa de construir um partido desse tipo.

Lênin rejeitou todas as ideias de vanguardas auto-proclamadas. Para ele, a prova do pudim estava na comida, ou seja, na capacidade da vanguarda de realmente liderar grandes lutas da classe trabalhadora. E o teste supremo do partido - a liderança na luta pelo poder - pressupõe a conquista do apoio consciente da maioria da classe trabalhadora e das massas trabalhadoras.

4. Conselhos de trabalhadores

A teoria dos conselhos de trabalhadores (sovietes) como instrumentos de poder da ditadura do proletariado e como formas mais elevadas de democracia do que a democracia burguesa parlamentar. Lênin acreditava, como Marx, que entre o capitalismo e o socialismo há um período de transição chamado ditadura revolucionária do proletariado. Assim como Marx, Lênin não acreditava que se poderia derrubar o capitalismo através do caminho de reformas graduais, de eleições parlamentares ou de leis no quadro das instituições burguesas. A vitória da revolução socialista pressupõe não apenas a propriedade coletiva dos meios de produção, mas também a destruição do aparato estatal burguês - isto é, do aparato de repressão dirigido contra a grande massa de pessoas.

A essência de um Estado operário, isto é, de uma ditadura do proletariado, não é para Lênin nenhum pesadelo “totalitário” do tipo 1984, mas, como descrito em O Estado e a revolução, um sistema democraticamente centralizado de conselhos de trabalhadores eleitos livremente, que exercem simultaneamente todas as funções legislativas e executivas, assim como o fez Comuna de Paris.

Para Lênin, a ditadura do proletariado significa mais liberdades democráticas reais para os trabalhadores e para as massas trabalhadoras do que em qualquer regime democrático-burguês.

Significa o desfrute pleno e irrestrito da liberdade de imprensa, da liberdade de associação e de manifestação para todo e qualquer grupo de trabalhadores (e não apenas para um partido único), assim como os meios materiais para usufruir dessas liberdades.

Mesmo para as classes burguesas, Lênin não descartou, em princípio, o direito de gozar de liberdades democráticas sob a ditadura do proletariado, mas também não estava pronto para garantir isso a elas. Na sua opinião, isso era uma questão de relação de forças, isto é, da força e da violência da oposição contrarrevolucionária à classe trabalhadora vitoriosa.

Quanto ao papel de direção do partido dentro das instituições soviéticas, isso era para Lênin uma questão estritamente de persuasão política, de capacidade de conquistar a lealdade da maioria, e de modo algum uma questão de repressão sistemática de todas as tendências conflitantes (Lênin admitiu a necessidade de tal repressão somente em circunstâncias excepcionais de guerra civil, quando a maioria dessas tendências estava envolvida em violência militar aberta contra o governo revolucionário).

5. A Internacional

A teoria do internacionalismo, sendo a Internacional a única forma organizacional para a vanguarda proletária e para os Estados operários congruente com as necessidades da economia mundial e da humanidade trabalhadora, produzida pelo imperialismo. É por isso que Lênin proclama a necessidade da Terceira Internacional no mesmo dia em que reconhece que a Segunda Internacional está morta. Por isso permaneceu até o fim como um defensor apaixonado do direito de autodeterminação de todas as nações. Foi por isso que proclamou a necessidade de independência da Internacional Comunista em relação ao Estado soviético: nenhuma manobra desse Estado (por exemplo, concluir uma trégua com o imperialismo alemão; fazer uma aliança com o estado kemalista na Turquia, etc.) deveria implicar qualquer mudança de orientação da Internacional Comunista a partir de sua linha de preparação, favorecimento e garantia das melhores condições possíveis para a vitória das lutas revolucionárias proletárias em todos os lugares.

Pela mesma razão, ele se opôs a qualquer tentativa de russificação das repúblicas soviéticas não russas e considerou a atitude dos comunistas nos países imperialistas em relação aos movimentos de libertação nacional dos países oprimidos por sua própria burguesia como uma pedra angular do internacionalismo.

6. O papel do partido

A teoria da centralização política, através do partido revolucionário de vanguarda, de todas as demandas democráticas de massa progressistas e movimentos de massa em um único fluxo em direção a uma revolução socialista. Embora Lênin tenha desenvolvido esse conceito em um momento em que ainda não aceitava a ideia do crescimento ininterrupto da revolução russa em uma revolução socialista, ele a manteve e a estendeu durante os anos de fundação da Internacional Comunista, quando baseou todo o seu pensamento na estratégia para a revolução socialista.

Esse conceito decorre de uma compreensão dialética da estratificação da classe trabalhadora e das massas trabalhadoras em camadas com diferentes níveis de consciência e com diferentes interesses imediatos, que devem ser unificados (na medida em que não representam causas contrarrevolucionárias) para tornar possível uma revolução de massas.

Também deriva de uma profunda compreensão da natureza antidemocrática e reacionária do imperialismo, que não só nega à maioria da humanidade direitos elementares como os da independência e dignidade nacionais, mas que tende também a corroer nos próprios países imperialistas as próprias conquistas das revoluções democráticas burguesas do passado.

Mas, contrário aos oportunistas de todos os tipos, o conceito de Lênin de unir a luta pela democracia e a luta pelas demandas de transição não significou de modo algum uma abdicação ou uma subordinação do objetivo socialista aos desejos ou preconceitos dos “aliados” temporários; pelo contrário, baseava-se na firme convicção de que somente a revolução socialista vitoriosa poderia trazer um triunfo final e definitivo para esses objetivos democráticos.

7. Centralismo democrático

A teoria do regime partidário interno baseado no centralismo democrático, que não significa apenas o governo da maioria e a necessidade das minorias de aplicar na prática as decisões da maioria, mas também direitos democráticos completos de discussão dentro do partido, o direito de formar tendências, de submeter plataformas coletivas para congressos partidários, para que sejam discutidas em pé de igualdade com as propostas da direção antes dos congressos, de informações completas e imparciais aos membros sobre as diferenças políticas que surgem na organização, etc.

Foi assim que o partido bolchevique e a Internacional Comunista funcionaram durante a vida de Lênin. É indicativo do abismo que separa o leninismo do centralismo burocrático aplicado hoje na URSS e no leste europeu que a tentativa hesitante da liderança do PC da Checoslováquia de retornar, em 1968, a algumas dessas normas leninistas em um novo projeto de estatuto para o 14ª congresso do partido tenha sido tomada furiosamente como um sinal de “tendências anti-socialistas de direita” dentro desse partido por Brejnev e companhia.

Já antes da morte de Lênin, muitos desses princípios básicos do leninismo, se não todos, estavam começando a ser contestados pela nova direção stalinista dentro do PCUS (Partido Comunista da União Soviética) e da Internacional Comunista. A última luta de Lênin foi uma tentativa desesperada de impedir essa perversão de sua doutrina. Esse revisionismo não era, obviamente, um fenômeno puramente ideológico. Refletia uma mudança social profunda dentro da sociedade pós-revolucionária russa e dentro do PCUS.

Sobre a base da crescente passividade da classe trabalhadora russa - resultante do atraso do país e do recuo temporário da revolução mundial - uma camada burocrática privilegiada monopolizou o exercício do poder e a administração do Estado e da economia. Subordinou duramente o partido a um aparelho que defendia seus próprios interesses particulares, se necessário contra os interesses históricos e imediatos da revolução mundial e da própria classe trabalhadora russa.

O stalinismo foi apenas a expressão ideológica da ascensão daquela casta parasitária. É a própria antítese do leninismo, a doutrina proletária da revolução socialista.

8. A herança de Lênin

A Oposição de Esquerda em torno de Trotsky, e mais tarde a Quarta Internacional, manteve e enriqueceu a herança do leninismo durante os anos de reação e de recuo da revolução mundial. Estes agora são substituídos novamente por uma nova época de revolução mundial ascendente.

Um número crescente de trabalhadores, estudantes e intelectuais revolucionários e camponeses pobres entendem a validade do leninismo e participam da construção de novos partidos revolucionários a nível mundial. O futuro pertence ao leninismo. É por essa razão que pertence à Quarta Internacional.

– Ernest Mandel, abril de 1970

Nenhum comentário