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A Época Capitalista Atual e suas Raízes

Fabio Sobral*

Vivemos um período de inflação alta no Brasil e em diversos países. Os bancos centrais das economias ocidentais elevam taxas de juros. A renda e a riqueza se concentram aceleradamente nas mãos de setores já extraordinariamente ricos. Há indicadores de queda da atividade econômica nos países europeus, o que poderia levar a uma crise de grandes proporções.

Tais fatos não estão desligados entre si. Na verdade, eles possuem uma íntima conexão. Além disso, não são eventos que podem ser explicados apenas pelos eventos conjunturais. Elas são o resultado de um longo processo que começou em 1971. Tentaremos apresentar uma possível explicação.

Há uma premissa básica, a de que o capitalismo se divide em duas formas de ação distintas e que não ocorrem homogeneamente em todas as partes do mundo. Tais formas são: a busca por imensas taxas de lucro e a de busca por massas de lucro em expansão. Marx definia os mecanismos de taxa e massa de lucro em seu “O Capital: crítica da economia política – Livro Terceiro”. Buscarei apresentar os dois mecanismos de forma ainda incipiente como eras do capitalismo. Algo que está em elaboração e será apresentado em um livro posteriormente.

E o que são essas épocas?

Mecanismo de domínio centrado na busca por taxas de lucro maiores

A forma de taxa de lucro busca obter altos lucros por cada produto individual. Seu procedimento é rebaixar os preços de produtos das colônias, países dependentes e periféricos ao comprar. Elevar os preços ao vender. Fazem assim com que o lucro obtido por cada operação comercial se eleve.

Esta relação acaba por se espalhar nas relações comerciais de indivíduos; os que possuem maior poder e controle sobre o mercado impõem preços mais baixos ao comprar e preços mais altos ao vender.

Esse é o mecanismo da troca desigual entre países, que transfere riquezas dos países subjugados para os países dominantes. Celso Furtado em seu clássico “Formação Econômica do Brasil” e Arghiri Emmanuel em seu “Unequal Exchange: A Study of the Imperialism of Trade” discutem as trocas desiguais entre países centrais e dependentes. Porém, ela não se restringe a países. As relações individuais também são afetadas por essa profunda desigualdade na distribuição de riquezas.

Podemos afirmar que esse mecanismo dirigiu grande da história econômica do capitalismo. Isso desmente as teorias fantasiosas de que os preços são definidos por mecanismos imparciais de mercado, ou apenas baseados em custos de produção. Os preços são elementos políticos e levaram a diversas revoluções políticas ao longo dos séculos. Basta citar as revoluções inglesas do século XVII, analisadas por Christopher Hill em seu livro “O Século das Revoluções”. Ou a Revolução de Independência americana. Ou a Revolução Francesa, analisada por Eric Hobsbawn em seu livro “A Era das Revoluções”.

A teoria econômica dominante construiu uma interpretação totalmente desligada da realidade ao tentar dizer que os preços e, consequentemente, a inflação são definidas cientificamente e imparcialmente pelas condições da demanda e da oferta. Haveria uma igualdade de condições entre consumidores e donos do capital. Uma ilusão feita para esconder a verdadeira natureza do capitalismo.

Mecanismo de domínio por meio da massa de lucro

A outra forma dominante do capitalismo ocorre em momentos em que o capital se vê ameaçado, ou perde o controle absoluto dos mecanismos políticos.

Nesses momentos a produção se expande, os pequenos negócios prosperam e a renda é distribuída de forma a atingir um pouco melhor as camadas assalariadas. A expansão do consumo impõe a disputa entre concorrentes por meio de preços mais baixos.

Esses são períodos relativamente curtos e geralmente atingem poucos países. Thomas Piketty analisa a diminuta extensão desses períodos em seu livro “O Capital no Século XXI”.

O objetivo central desses períodos é a expansão do mercado consumidor interno por meio de salários mais altos. Nos países capitalistas centrais ficaram conhecidos com Estado de Bem-Estar Social (“Welfare State”). A rigor, seu auge foi de 1945 a 1975 nesses países e então começa um longo declínio das condições de vida, aceleradamente nos países mais periféricos e mais lentamente nos países centrais.

A nossa época

Vivemos sob o domínio da destruição das conquistas sociais e trabalhistas. Um período longo que, como dissemos, começa em 1971 e se estende até hoje. Christophe Guilluy em seu livro “O Fim da Classe Média” analisa esse declínio na sociedade francesa. Lance Taylor faz análise semelhante nos Estados Unidos em seu livro “Macroeconomic Inequality from Reagan to Trump”. Ainda podemos ver “Les Ghettos du Gotha. Comment la bourgeoisie défend ses espaces” e “Les Predateurs au Pouvoir: main basse sur notre avenir” de Monique Pinçon-Charlot e Michel Pinçon.

A grande inflação dos anos 1970 e 1980 foi derivada das elevações dos preços do petróleo em duas grandes crises. Os preços da energia fóssil mais altos fizeram com que os países periféricos tivessem que exportar seus produtos com preços mais baixos e assim conseguir pagar os custos crescentes.

Os Estados Unidos forçaram a subida dos preços do petróleo. Uma análise feita por Michael Hudson, em seu livro “Super Imperialism: The Origin and Fundamentals of U. S. World Dominance”, detalha como os preços dos alimentos foram elevados pelo governo americano. Os Estados Unidos eram então os maiores produtores mundiais de alimentos.

A subida dos preços dos alimentos fez os países produtores de petróleo subirem proporcionalmente seus preços. Os EUA obrigaram esses países a negociar exclusivamente em dólares, o que manteve o controle americano sobre eles. Os mercados financeiros de Londres e Nova Iorque passaram a dirigir o mercado mundial de petróleo. O restante do mundo passa a ter seus custos de energia dirigidos a partir destes mercados. Todos os produtos têm preços afetados e começa um processo inflacionário mundial.

Começa a destruição do Welfare State e a criação de uma “nova” época de imensas taxas de lucro para o capital por meio da elevação de preços e de desigualdade crescente, de profunda elevação da exploração das camadas assalariadas, além da destruição de pequenos negócios e produtores individuais.

Para permitir essa exploração crescente era preciso derrubar governos nacionalistas, implantar ditaduras, promover massacres e genocídios, instalar um mecanismo de guerra permanente contra o mundo. Eis uma das razões principais para o hipertrofismo do setor bélico nos EUA. Vincent Bevins analisa esse mecanismo de ditaduras e genocídios em seu livro “The Jakarta Method”.

Começa um período de caos, como diz Samir Amin em “El Império del Caos”, além de Pepe Escobar em seu livro também chamado “Império do Caos”.

Porém, os custos crescentes de guerras exigiam volume de dinheiro cada vez maior do orçamento do governo americano. Era preciso financiar esses gastos. Para isso, um plano terrível foi elaborado. Paul Volcker, presidente do “Federal Reserve”, o banco central americano, elevou as taxas de juros de seu país.

A consequência imediata foi a explosão do endividamento dos países periféricos. Estes viram os juros se elevarem exponencialmente. Surgem as crises das dívidas. Os países não conseguem pagar os juros dos empréstimos. As suas riquezas são drenadas para as classes dominantes dos países centrais. Suas indústrias começam a falir. A fome atinge cada vez maiores camadas das populações. Os salários caem. O desemprego se torna crônico. As atividades ilícitas assumem o controle de regiões inteiras. O caos se expande.

As classes dominantes absorvem as riquezas por meio da cobrança das dívidas dos países. E exigem o seu pagamento. Seus privilégios são assegurados por Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial, Clube de Paris. Isso é descrito por David Graeber em seu livro “Dívida: 5.000 anos de história” e por João Márcio Mendes Pereira em “O Banco Mundial como Ator Político, Intelectual e Financeiro: 1944-2008”. Além deles, temos o extraordinário trabalho de Maurizio Lazzarato em “The Making of Indebted Man: An Essay on the Neoliberal Condition”.

As classes dominantes usam intensamente as forças armadas americanas e europeias, as agências de espionagem e terrorismo (CIA, MI 6) para eliminar os obstáculos, além de seus representantes repressivos locais nos países periféricos.

Era preciso justificar esse novo período de desagregação dos países e de suas populações. Entram em cena a teoria econômica tradicional e a neoliberal. Nancy MacLean descreve essa elaboração em “Democracy in Chains: The Deep History of the Radical Right’s Stealth Plan for America”. A autora situa o começo dessa construção em 1956, na Universidade da Virgínia, dirigida por James MacGill Buchanan Jr. Não à toa ele é depois agraciado com o Nobel de Economia.

As explicações da teoria econômica conservadora dizem que os países e pessoas devem pagar suas dívidas custe o que custar. Seria um “risco moral” não pagar. Não falam que os credores aumentam seus juros a seu bel prazer tornando as dívidas impagáveis, verdadeiras sangrias dos assalariados para os setores do grande capital.

Ainda dizem que as inflações altas devem ser combatidas com juros altos para reduzir o consumo. Seria uma medida responsável, ocultando que o objetivo é outro: fazer as dívidas crescerem indefinidamente e, consequentemente, elevar as taxas de lucro do grande capital e suas corporações e empobrecer camadas médias assalariadas e pequeno-proprietárias, além de fazer crescer imensamente a taxa de exploração das camadas trabalhadoras assalariadas.

Os dias de hoje

Estamos no auge desse mecanismo. As corporações dominam mercados e transporte. Vejam os livros “A Corporação; a busca patológica por lucro” de Joel Bakan; “Quando as Corporações Regem o Mundo” de David C. Korten; e “The Politics of Operations” de Sandro Mezzadra e Brett Neilson.

O mecanismo de aceleração dos lucros segue o mesmo roteiro: elevar os preços dos combustíveis fósseis e alimentos. Surgem explicações dos economistas tradicionais em seu eterno papel de iludir e convencer. Dizem que foi a pandemia de covid 19, ou a guerra na Ucrânia. Já preparam a desculpa seguinte, o acirramento das disputas comerciais com a China.

Há uma imensa transferência de renda para os setores dominantes. O empobrecimento se espalha aceleradamente até nos países centrais. Fome e frio ameaçam a Europa. A fome já é uma consequência da inflação e do desemprego no Brasil e em vários países do mundo. O Brasil é uma espécie de balão de ensaio do neoliberalismo e do grande capital. O “projeto” de Paulo Guedes atingiu seus objetivos. Vejam meu artigo “O Sucesso da Gestão Paulo Guedes” na página de geopolítica Dossier Sul.

Nossa época e seus desafios começaram há pelo menos cinquenta e um anos, em 1971. Para enfrentá-la é preciso ver claramente seus fundamentos teóricos, políticos, geopolíticos, econômicos e sociais. Precisamos de teorias que confrontem e substituam princípios inculcados na mente da maioria, até mesmo da esquerda, com sua adesão a reformas trabalhistas, previdenciárias e de gestão do aparelho estatal.

Precisamos recompor nossa visão de mundo e enfrentar os nossos verdadeiros inimigos: o grande capital e suas corporações!

* Fabio Sobral é Professor da UFC nos cursos de Economia Ecológica, Economia e Pós-graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema) Economista com doutorado em Filosofia pela Unicamp.

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